terça-feira, 21 de outubro de 2014

Nunca passei fome. O mérito é meu?


Criança Morta (Série Retirantes). Cândido Portinari, 1944.


Recentemente, assisti uma reportagem especial do Jornal Nacional de 2001, que falava sobre a fome existente no Brasil. Naquele ano, segundo a notícia, mais de 36 milhões de brasileiros estavam abaixo da extrema pobreza. As cenas apresentada pela série do JN são muito tristes, chegam a ser cruéis. Os quadros vão mostrando a miséria espalhada por todo o país, desde as paisagens mais áridas - não restritas somente ao Nordeste - até as periferias dos centros urbanos, favelizadas em função do êxodo de pessoas na busca por uma vida digna. O que mais fere o coração são os depoimentos de pais e mães que não conseguem obter renda familiar suficiente para alimentar seus próprios filhos. Havia crianças que morriam nas primeiras semanas de vida e a frequência desses casos era tão alta, que existiam "cemitérios de anjos" criados especificamente para o enterro de recém-nascidos desnutridos. No decorrer na reportagem, alguns especialistas são entrevistados e um deles, o médico e pesquisador Flavio Valente, que continua até hoje ativamente na luta contra a fome mundial, fala magistralmente:
"Nós temos aqui [no Brasil] todas as condições técnicas para garantir a erradicação da fome; e uma enorme acomodação da sociedade, acreditando que isso [a fome] é natural. Ninguém nasceu para morrer de fome".
Intrigado com a matéria da TV Globo e a fala do Flavio, fui buscar informações sobre o tema. Um estudo interessante do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da FGV, de 2001, apresenta uma série de dados sobre as condicionantes para a erradicação da pobreza no Brasil. O que mais chamou minha atenção foi que se cada brasileiro disponibilizasse 15 reais mensais, não haveria mais indigentes no país. Ou seja, todas as milhões de pessoas que não tinham condições financeiras de garantir a refeição seguinte seriam incluídas no grupo das que, ao menos, se alimentariam diariamente.

Cada brasileiro, isoladamente, não tinha instrumentos para erradicar a fome no país, mas o governo da época poderia ter criado políticas públicas eficazes de modo a expurgar esse problema do mapa. Não o fez com a alegação de que "estava fazendo", locução verbal que soava como um gerúndio de 500 anos. Faltava apenas paciência. Ora bolas! Não estou falando aqui de indicadores econômicos vistos de uma tela de computador. Estou falando de pessoas morrendo de fome, de crianças desnutridas, de famílias inteiras tendo que abandonar seu lar em busca de comida para sobreviver. Falar de gente não é falar de números.

Ao falar de números, a relevância de determinadas ações fica escondida atrás de um indicador frio sendo comparado com referenciais europeus ou africanos. Nota-se a disparidade dos números, mas não são visualizadas as fotografias das pessoas. Portanto, se for pra falar de números, falemos dos grandes e notáveis. Falemos da diferença existente entre 5 milhões e 50 milhões, que pode ser apenas um zerinho ou 45 milhões de pessoas morrendo de fome. O que difere os dois é a prioridade de um governo ou de outro. Por falar nisso, o PT deveria assumir publicamente que o PSDB criou, sim, algumas políticas sociais. Em seguida, deveria dizer que ninguém come lei e que de nada adianta escreve-la, se não for torna-la prioridade na gestão do executor. O antagonismo entre os dois partidos existe na priorização que dão em suas políticas sociais rumo a desconcentração de renda.

Os mais liberais que apóiam Aécio Neves defendem a ideia da prosperidade, sempre incluindo ressalvas que não existem no mundo real. Se eu disser que concordam com a descrição de Adam Smith exatamente como na obra "Riqueza das Nações", estarei exagerando; mas a lógica não foge muito. Em linhas gerais, sem demagogia: se o nosso PIB crescer, todos os brasileiros ganham. Agora na lógica da dona de casa: se eu aumentar a receita do bolo, poderei repartir por mais pessoas. Parece perfeito na teoria, mas empiricamente não foi comprovado. Ao contrário, posso afirmar que em países onde a concentração de renda é muito grande - como ocorre no Brasil -, essa teoria foi experimentalmente refutada. Se discorda disso, releia o primeiro parágrafo desse texto. Na prática do bolo, cada pedaço fica maior, mas não é repartido como a dona de casa gostaria que fosse. O liberalismo é um sofisma perfeito, pois funciona no equilíbrio do mercado de canhão e manteiga, mas é completamente inconclusivo para o nosso modelo de Estado.

Deixo registrado que o Plano Real, a estabilidade da moeda e o controle inflacionário tiveram grande relevância para o aumento da confiança no país e para a redução de incertezas, mas foram insuficientes para a construção de uma Nação que garanta o direito à vida. Dados históricos sobre a pobreza no Brasil mostram que a diminuição da inflação teve sucesso na redução da miséria. Contudo, na primeira crise enfrentada por FHC, grande parte de suas conquistas sociais foram perdidas e o governo não detinha os instrumentos necessários para realização de políticas compensatórias.

Um modelo mais liberal, em sua essência, torna o Estado menos responsável pelas vidas do seu povo. Essa postura assume a paridade de forças entre pessoas que nasceram em condições extremamente desiguais. É inegável que a herança do indivíduo acaba tendo valor infinitamente maior que o seu mérito. Nesse momento, nesse Brasil, nessas condições, posso afirmar que a meritocracia é uma falácia. Eu, particularmente, não sei o que é passar fome e essa hipótese nunca esteve presente na minha vida. No entanto, minha parcela de mérito nisso é tão ínfima quanto a parcela de culpa dos que não tem o que comer ou não conseguem produzir riqueza.

Graças às políticas sociais que foram priorizadas nos últimos 12 anos, a fome descrita na reportagem do JN foi erradicada. A prova disso é que qualquer cidadão tem direito por lei e acesso na prática às políticas assistenciais contra a pobreza. Essas imagens desumanas ficaram registradas no livro "Vidas Secas" e na série de quadros "Retirantes". Os autores faleceram com a memória de um Brasil miserável, que felizmente não existe mais. Essa é a mudança que eu escolho.

Um comentário:

  1. Emocionante, meu filho! Talvez esteja faltando isso: emocionar-se com a miséria retratada por Portinari, ou com a secura árida de Graciliano. Talvez, por ser nordestino como Graciliano, Lula tenha começado essa mudança.

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